São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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O PEDREIRO DO VERSO

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

"Entre a dor de cabeça e a angústia, eu preferia a dor de cabeça." A frase –que parece uma versão mais concreta da famosa "entre a dor e o nada eu fico com a dor", de Faulkner– resume o humor agreste de João Cabral de Melo Neto.
Depois de décadas tomando seis aspirinas por dia, ele viu seu mal físico desaparecer inexplicavelmente ao final de uma operação de úlcera. Em seu lugar, instalou-se a angústia.
A angústia do maior poeta brasileiro vivo parece ter aumentado com a perspectiva da publicação, em junho, de sua obra completa, poesia e prosa, em um volume. Ele se diz lisonjeado, mas não evita a autopiada: "É uma coisa meio póstuma".
A publicação coincide com o momento de maior prestígio do escritor: em 1992 ele recebeu nos Estados Unidos o Prêmio Neustadt de Literatura, um dos mais importantes do mundo, e vem sendo apontado como favorito ao Nobel. Nas páginas seguintes, sua obra é abordada em três leituras diferentes.
Nascido no Recife em 1920, o autor de "Uma Faca Só Lâmina" viveu no exterior como diplomata entre 1947 e 87, servindo em países como Espanha, Suíça, Portugal e Honduras.
Aposentado em 88, fincou pé no Rio com a mulher, a poeta Marly de Oliveira, 58. Nos últimos tempos, graves problemas de visão têm-no impedido de ler e escrever. Ele, que não gosta de música, passa o dia ouvindo a rádio de notícias CBN.
Nesta entrevista, em seu apartamento no Flamengo, falou sobre poesia, futebol, toureiros e realismo socialista. E mostrou que o humor e a lucidez continuam afiados.
*
Folha - A publicação de suas obras completas é, por certo, uma distinção. Mas não incomoda ao sr. ver sua obra transformada num monumento?
João Cabral de Melo Neto - Para mim, dá a impressão de uma coisa meio póstuma, sabe? (risos). Mas eu fico muito, como se diz, "flaté" (lisonjeado) de ter sido escolhido vivo, ainda.
Folha - Nas próximas edições, espero que a editora tenha de incorporar os poemas que o sr. aninda vai fazer.
João Cabral - Com esse negócio de olhos – estou com a visão muito ruim dos dois olhos –, acho difícil. Eu, para escrever, preciso ver muito o que eu estou escrevendo, compreende, sou incapaz de compor uma coisa de cabeça e ditar. O poema, para mim, é como se eu pintasse um quadro. Preciso ver como é que está ficando a forma dele. De modo que eu tenho a impressão de que, apesar de ter muita coisa começada, não sei se eu poderei terminar. Mas não precisa dar essa nota de pessimismo, não, porque pode ser que eu melhore e tudo mude ...
Folha - Como é o seu processo de trabalho?
João Cabral - Eu demoro muito a escrever. Tem poemas meus que eu levei dez anos para escrever. Faço um esboço, trabalho sobre ele, depois deixo, depois retomo.
Não sou desses escritores de "suspiros poéticos e saudades", título do livro daquele poeta romântico (Gonçalves de Magalhães). Para um sujeito desses, não ter a vista não é nenhum problema. Basta a ele cantar seus poemas (risos).
Folha - Saiu recentemente uma biografia do Carlos Drummond, "Os Sapatos de Orfeu", de José Maria Cançado, que fala do afastamento entre ele e o sr. a partir de uma certa época...
João Cabral - Não houve afastamento nenhum. O que o pessoal ignora é que desde 47 eu vivi no estrangeiro. Eu era diplomata de carreira. De 47 a 87 eu vivi fora do Brasil. Não houve afastamento nenhum. Eu não sou de escrever carta, compreende, mas eu continuei amigo do Carlos até ele morrer. Aliás, eu estava no Porto quando ele morreu. De minha parte não houve afastamento. Se houve da dele, não sei. Carlos Drummond nunca foi muito homem de receber visita. Em geral ele era encontrável na cidade. Minhas passagens pelo Rio eram rápidas, quando eu mudava de um posto para outro, de forma que eu nem ia no centro da cidade.
Folha - Outro poeta que foi muito seu amigo, mas que de certa forma é seu antípoda poético, foi Vinícius de Moraes. O sr. acha que o Vinícius, de certa maneira, representava uma tendência comum entre os artistas brasileiros de ceder a uma certa lassidão, a uma certa autocomplacência, a uma tendência à facilidade, em sua literatura?
João Cabral - Vinícius fez a poesia que ele queria fazer. Ele era capaz de fazer as poesias mais sofisticadas, se quisesse, como também era capaz de compor samba. Ele era um poeta de uma habilidade como não conheci outro igual. De forma que, se ele entrou por esse caminho do samba, foi porque ele quis. Porque antes ele tinha feito coisas da maior sofisticação.
Folha - A proprósito: em seu discurso de agradecimento pelo prêmio Neustadt, no ano passado, o sr. dizia que o lirismo, hoje, é representado pela música popular, e que a poesia tem de ser outra coisa...
João Cabral - A poesia lírica, como o nome diz, é feita para ser cantada. Agora, depois do romantismo, todo mundo faz uma poesia de assunto, vamos dizer, cantável, mas para a qual não se faz música. Então o lirismo se desligou da música. Mas o verdadeiro lirismo é o lirismo para ser cantado. Por exemplo: teatro lírico o que é? É a ópera. Antes do romantismo, existia uma poesia épica, uma poesia histórica, uma poesia didática, até uma poesia epistolar. Uma vez o rei da Espanha se casou com uma princesa italiana, se não me engano, e havia uma duquesa muito rica lá em Madri que não podia receber a princesa no porto de Valência, mas estava curiosa para saber da festa da chegada. Naquele tempo não tinha televisão, nem imprensa, então ela contratou o Lope de Vega para ir a Valência e descrever para ela as festas da chegada da princesa. E o Lope de Vega fez uma série de cartas em verso descrevendo a cerimônia. Então, havia uma poesia epistolar, geográfica. Eu tenho a impressão de que a poesia puramente lírica é a poesia cantada. Agora, tem muita gente que faz poesia lírica, mas que não é para ser cantada, porque não encontra compositor para botar a música (risos). O Vinícius foi consequente com o lirismo dele ao desembocar na música popular. Ele deve ter sentido isso que eu estou dizendo.
Folha - Uma das suas particularidades é a de não gostar de música, e em sua poesia o sr. de certo modo evitou a música...
João Cabral - Aí é o seguinte: eu realmente não tenho ouvido para a música, compreende, e só gosto de duas músicas: o frevo de Pernambuco e o flamenco da Andaluzia. O resto de música não me interessa. Mas o negócio é que música não é só melodia. Música é ritmo também. E minha poesia é musical no sentido de que ela é fortemente rítmica.
Folha - Mas o sr. sempre evitou os ritmos mais tradicionais, como a redondilha...
João Cabral - Ah, sim. Mas aí é porque esse ritmo já tinha se tornado melodia, compreende? Eu não sou auditivo. se eu vou a uma conferência, de repente percebo que não estou prestando atenção ao que diz o conferencista. Tenho a impressão de que deve ser influêcia do colégio marista, em que eu ouvia tanto sermão e tanta música clássica. Sou incapaz de me recordar de uma música. Só lembro do hino de Pernambuco e do hino brasileiro. Minha atenção é visual. Uma coisa que eu leio, uma coisa que eu vejo, eu não esqueço nunca.
Não se pode dizer isso de toda música, mas em geral a música me faz dormir. E, como dizia Valéry, ele estava sempre à procura não do que o fizesse dormir, mas do que o fizesse despertar. Eu também estou sempre à procura de uma coisa que me acorde, e não de uma coisa que me embale.
Você vê, por exemplo, que eu não tenho poemas cantantes, não tenho poemas de embalar. Eu procuro uma linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele deslize. O Pierre Reverdy dizia: o poeta é "maçon" (pedreiro). Ele ajusta as pedras. O prosador é "cimentier" , ele "coule le ciment" (espalha o cimento). Eu procuro fazer uma poesia que não seja asfaltada, que seja um calçamento de pedras, em que o leitor vá tropeçando e não durma, nem seja embalado.
Folha - Eu gostaria que o sr. falasse de outro poeta que parece radicalmente oposto ao sr., o Mário Quintana, morto recentemente, que tinha aquela coisa de valorizar a inspiração e se dizer poeta em tempo integral...
João Cabral - Pois é, mas aí é que está o negócio da sensibilidade poética. Eu, apesar de ter essas minhas idéias, minha sensibilidade não se fecha a outro tipo de poesia. Eu achava Mário Quintana um grande poeta, como acho o (Augusto Frederico) Schmidt um grande poeta. Cecília Meireles, que tem uma música, uma poesia embaladora, é uma grande poeta. O Jorge de Lima, que tinha também aquela poesia meio retórica, como o Schmidt, é um grande poeta. Minha sensibilidade não se fecha a essa gente. Quer dizer, quando eu faço, tento fazer uma coisa. Mas isso não quer dizer que eu só goste daquilo. Eu devo muito ao Paul Valéry, mas gosto imensamente da poesia de Paul Claudel, que era o contrário. Felizmente tenho essa capacidade, de gostar de uma poesia que seja o oposto da minha.
Folha - O sr. simpatizou muito com a poesia concreta. Não acha que em suas atitudes mais radicais – a abolição do verso, o próprio desmembramento da palavra –, o concretismo acabou dando num beco sem saída?
João Cabral - Eu tenho a impressão de que aquelas experiências concretistas não estavam esgotadas. Eles podiam continuar fazendo aquilo. Agora, se eles sentiram necessidade de fazer outra coisa, é um problema deles. Mas a experiência deles não estava esgotada. É a mesma coisa que dizer que a pintura do Mondrian estava esgotada. Mondrian morreu, deixou de pintar, mas podia ter continuado naquelas experiências.
Existe uma concepção agora de que o autor tem sempre que se renovar. Eu tenho a impressão de que o autor, depois que chega a sua maneira pessoal, deve desenvolver aquilo e executar aquilo, e não viver num estado permanente de evolução. Você vê na pintura, por exemplo, ou na escultura. Hoje você pega dois tijolos, amarra com arame e diz que é uma escultura.

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